sábado, 11 de setembro de 2010

Porque hoje é sábado.

Com Kierkegaard e mais tarde com Heidegger e Jean-Paul Sartre percebeu-se que a existência precede a essência, isto é, o homem primeiro existe, se descobre e só depois é que se define. Com Vinícius de Moraes não podia ser diferente e não há melhor explicação do que esta para compreender a complexidade todo o seu trabalho poético e das suas diferentes fases criativas.

O «Dia da Criação» corresponde a uma jornada marcada pela forte formação religiosa da infância e na procura da transcendência espiritual, é neste processo que surge o questionamento do homem e da importância da sua criação...



O dia da criação

Macho e fêmea os criou.
Bíblia: Gênese, 1, 27

I

Hoje é sábado, amanhã é domingo
A vida vem em ondas, como o mar
Os bondes andam em cima dos trilhos
E Nosso Senhor Jesus Cristo morreu na Cruz para nos salvar.

Hoje é sábado, amanhã é domingo
Não há nada como o tempo para passar
Foi muita bondade de Nosso Senhor Jesus Cristo
Mas por via das dúvidas livrai-nos meu Deus de todo mal.

Hoje é sábado, amanhã é domingo

Amanhã não gosta de ver ninguém bem
Hoje é que é o dia do presente
O dia é sábado.

Impossível fugir a essa dura realidade
Neste momento todos os bares estão repletos de homens vazios
Todos os namorados estão de mãos entrelaçadas
Todos os maridos estão funcionando regularmente
Todas as mulheres estão atentas
Porque hoje é sábado.

II

Neste momento há um casamento

Porque hoje é sábado.
Há um divórcio e um violamento
Porque hoje é sábado.
Há um homem rico que se mata
Porque hoje é sábado.
Há um incesto e uma regata
Porque hoje é sábado.
Há um espetáculo de gala
Porque hoje é sábado.
Há uma mulher que apanha e cala
Porque hoje é sábado.
Há um renovar-se de esperanças
Porque hoje é sábado.
Há uma profunda discordância
Porque hoje é sábado.
Há um sedutor que tomba morto
Porque hoje é sábado.
Há um grande espírito de porco
Porque hoje é sábado.
Há uma mulher que vira homem
Porque hoje é sábado.
Há criancinhas que não comem
Porque hoje é sábado.
Há um piquenique de políticos
Porque hoje é sábado.
Há um grande acréscimo de sífilis
Porque hoje é sábado.
Há um ariano e uma mulata
Porque hoje é sábado.
Há uma tensão inusitada
Porque hoje é sábado.
Há adolescências seminuas
Porque hoje é sábado.
Há um vampiro pelas ruas
Porque hoje é sábado.
Há um grande aumento no consumo
Porque hoje é sábado.
Há um noivo louco de ciúmes
Porque hoje é sábado.
Há um garden-party na cadeia
Porque hoje é sábado.
Há uma impassível lua cheia
Porque hoje é sábado.
Há damas de todas as classes
Porque hoje é sábado.
Umas difíceis, outras fáceis
Porque hoje é sábado.
Há um beber e um dar sem conta
Porque hoje é sábado.
Há uma infeliz que vai de tonta
Porque hoje é sábado.
Há um padre passeando à paisana
Porque hoje é sábado.
Há um frenesi de dar banana
Porque hoje é sábado.
Há a sensação angustiante
Porque hoje é sábado.
De uma mulher dentro de um homem
Porque hoje é sábado.
Há a comemoração fantástica
Porque hoje é sábado.
Da primeira cirurgia plástica
Porque hoje é sábado.
E dando os trâmites por findos
Porque hoje é sábado.
Há a perspectiva do domingo
Porque hoje é sábado.

III

Por todas essas razões deverias ter sido riscado do Livro das Origens, ó Sexto Dia da Criação.
De fato, depois da Ouverture do Fiat e da divisão de luzes e trevas
E depois, da separação das águas, e depois, da fecundação da terra
E depois, da gênese dos peixes e das aves e dos animais da terra
Melhor fora que o Senhor das Esferas tivesse descansado.
Na verdade, o homem não era necessário
Nem tu, mulher, ser vegetal, dona do abismo, que queres como as plantas, imovelmente e nunca saciada
Tu que carregas no meio de ti o vórtice supremo da paixão.
Mal procedeu o Senhor em não descansar durante os dois últimos dias
Trinta séculos lutou a humanidade pela semana inglesa
Descansasse o Senhor e simplesmente não existiríamos
Seríamos talvez pólos infinitamente pequenos de partículas cósmicas em queda invisível na terra.
Não viveríamos da degola dos animais e da asfixia dos peixes
Não seríamos paridos em dor nem suaríamos o pão nosso de cada dia
Não sofreríamos males de amor nem desejaríamos a mulher do próximo
Não teríamos escola, serviço militar, casamento civil, imposto sobre a renda e missa de sétimo dia,
Seria a indizível beleza e harmonia do plano verde das terras e das águas em núpcias
A paz e o poder maior das plantas e dos astros em colóquio
A pureza maior do instinto dos peixes, das aves e dos animais em cópula.
Ao revés, precisamos ser lógicos, freqüentemente dogmáticos
Precisamos encarar o problema das colocações morais e estéticas
Ser sociais, cultivar hábitos, rir sem vontade e até praticar amor sem vontade
Tudo isso porque o Senhor cismou em não descansar no Sexto Dia e sim no Sétimo
E para não ficar com as vastas mãos abanando
Resolveu fazer o homem à sua imagem e semelhança
Possivelmente, isto é, muito provavelmente
Porque era sábado.

Vinícius de Moraes, Poemas, Sonetos e Baladas, 1946

quarta-feira, 1 de setembro de 2010

Cry Freedom

Cry Freedom - Grita Liberdade (PT)


[Cry Freedom - Kevin Kline (Donald Woods) e
Denzel Washington (Steve Biko)]


Cry Freedom é um filme produzido em 1987, numa década de clara oposição internacional ao apartheid sul-africano que levaria à libertação de Nelson Mandela (1990) e em 94 à organização das primeiras eleições multi-raciais nesse país; contudo, a película retrata os anos 70 e Steve Biko. Fotografa um decénio onde o regime atingiu o seu apogeu e a raríssima oposição internacional era silenciada pelos benefícios económicos provenientes do sul de África e a intervenção interna sofria as consequências da desinformação e brutalidade de um governo que acreditava unicamente na excelência da sua raça dirigente.

Biko, foi dos poucos a lutar contra o regime da NP e dos únicos a fazê-lo de uma forma consciente, recusando sempre o auxílio à força armada. No filme, a personagem (interpretada por Denzel Washington) é forte - se calhar até demasiado -, mostrando o carisma que levaria milhares de pessoas a assistir aos seus discursos e mais tarde ao seu enterro. Esta figura é-nos dada a conhecer por Donald Woods - que na projecção é representado por Kevin Kline -, um director de um jornal sul-africano que escrevera vários editoriais a condenar as ideias de Stephen Biko por as considerar racistas. Woods, após aceitar um convite para conhecer Biko, começa a conviver regularmente com este e a conhecer as suas ideias de igualdade e de confronto sem violência, mudando aos poucos as suas percepções e imagens sobre a segregação racial.

O filme, realizado por Richard Attenborough (o mesmo de Gandhi e Chaplin), mostra um Steve Biko na sua condição de banido da sociedade (não podia comunicar com mais do uma pessoa) e a sua luta contra um regime racista usando as suas ideias de «confronto sem violência».



terça-feira, 27 de abril de 2010

O Medo

Os anos 60 foram os mais prolíficos e de maior vanguardismo de Alexandre O'Neill, submetendo a sua poesia a novas experiências, acrescentado ao seu surrealismo uma tendência concretista. O homem na sociedade portuguesa - o marasmo - enlaçado no sonho, na solidão, no amor e no medo. E será no medo, nas experiências encaminhadas para este sentimento que O'Neill terá dois dos temas mais fascinantes das suas obras...


A lavagem cerebral, 1952
[Retrato de Alexandre O'Neill],
Fernando Lemos



Perfilados de medo


Perfilados de medo, agradecemos

o medo que nos salva da loucura.

Decisão e coragem valem menos

e a vida sem viver é mais segura.

Aventureiros já sem aventura,
perfilados de medo combatemos

irónicos fantasmas à procura
do que não fomos, do que não seremos.

Perfilados de medo, sem mais voz,

o coração nos dentes oprimido,
os loucos, os fantasmas somos nós.

Rebanho pelo medo perseguido,

já vivemos tão juntos e tão sós
que da vida perdemos o sentido...

Alexandre O'Neill, Poemas com Endereço (1962). Poesia Completas, Maio de 2007

Poema pouco original do medo

O medo vai ter tudo

pernas

ambulâncias

e o luxo blindado

de alguns automóveis

Vai ter olhos onde ninguém os veja

mãozinhas cautelosas
enredos quase inocentes

ouvidos não só nas paredes
mas também no chão

no tecto

no murmúrio dos esgotos
e talvez até (cautela!)

ouvidos nos teus ouvidos


O medo vai ter tudo

fantasmas na ópera

sessões contínuas de espiritismo

milagres

cortejos

frases corajosas

meninas exemplares

seguras casas de penhor

maliciosas casas de passe

conferências várias

congressos muitos

óptimos empregos

poemas originais

e poemas como este

projectos altamente porcos

heróis

(o medo vai ter heróis!)

costureiras reais e irreais

operários

          (assim assim)
escriturários

          (muitos)

intelectuais

          (o que se sabe)
a tua voz talvez
talvez a minha

com a certeza a deles


Vai ter capitais

países
suspeitas como toda a gente

muitíssimos amigos
beijos
namorados esverdeados

amantes silenciosos

ardentes

e angustiados


Ah o medo vai ter tudo
tudo

(Penso no que o medo vai ter
e tenho medo
que é justamente
o que o medo quer)


                *


O medo vai ter tudo
quase tudo
e cada um por seu caminho

havemos todos de chegar
quase todos

a ratos


Sim

a ratos


Alexandre O'Neill, Abandono Vigiado (1960). Poesia Completas, Maio de 2007

quarta-feira, 31 de março de 2010

Qual é o fundamento da arte?

L'Enseigne de Gersaint de Antoine Watteau (1720), palácio de Charlottenburg, Berlim


Qual é o fundamento da arte? Se apesar da independência, da irreverência do artista, do pintor, ela representa-se no mercado como um material do mundo dos leilões. Qual é o fundamento da arte? Isto é, apesar da produção respeitar os valores das escolas e a projecção do pintor (lutas, ideias e ideais) ao tornar-se num valor comum de mercado inserido num sistema mercantilista comum, não terá a arte disposto os valores materiais à frente dos princípios? Não terá perdido a sua representação em troca do seu valor estético? São as questões influídas quando vejo este quadro de Watteau - da direita para a esquerda - onde a visão dum casal se perde num espelho ou (ao lado), dois sujeitos, olham para os pormenores eróticos de um quadro em vez de apreciarem a sua totalidade; ou, na outra parte da sala, são empacotados um conjunto de quadros como se fossem o mesmo, terá Jean Antoine Watteau conseguido representar o fundamento da arte?

quarta-feira, 17 de fevereiro de 2010

O mundo é natural ou fantástico?

Isto é, o mundo é uma perpetuação natural ou uma marca do fantástico?

Em Julho de 1966, Ronald Christ realizou com Jorge Luis Borges uma extraordinária entrevista - digna da personalidade do escritor argentino -, que realça as suas imagens da vida perceptíveis neste excerto onde sobrevém a questão inicial:


Como é que define o fantástico, então?
Pergunto-me se podemos defini-lo. Julgo que é sobretudo uma intenção, num escritor. Lembro-me de uma observação muito profunda de Joseph Conrad - é um dos meus escritores preferidos - acho que na epígrafe de algo como The Dark Line, mas não é isso...

The Shadow Line [A Linha de Sombra]?
The Shadow Line. Nessa epígrafe ele dizia que algumas pessoas tinham pensado que a história era uma história fantástica por causa do fantasma do capitão que fazia parar o navio. Ele escreveu - e isto impressionou-me porque eu próprio escrevo história fantásticas - que escrever deliberadamente uma história fantástica não era sentir que o universo é, todo ele, fantástico e misterioso; nem que uma pessoa sentar-se a escrever algo deliberadamente fantástico significa falta de sensibilidade. Conrad pensava que sempre que se escreve sobre o mundo, mesmo que de um modo realista, se escreve uma história fantástica, porque o mundo em si mesmo é fantástico e insondável e misterioso.

Partilha desta convicção?
Sim. Acho que ele tinha razão. Falei com Bioy Casares que também escreve história fantásticas - histórias muito, muito boas - e ele disse: acho que Conrad tem razão; na verdade ninguém sabe se o mundo é realista ou fantástico, ou seja, se o mundo é um processo natural ou se é uma espécie de sonho, um sonho que nós podemos ou não partilhar com os outros.

Jorge Luis Borges, Entrevistas da Paris Review, Outubro de 2009