quinta-feira, 8 de outubro de 2009

Sobre os falsificadores da guerra

Nos últimos dois anos fui conhecendo um pouco melhor Boris Vian, muito para além dos poemas e de Outono em Pequim, a cada frase não tenho dúvidas de o considerar um dos escritores mais imaginativos que alguma vez li, todas as conclusões que tínhamos antes de iniciarmos a leitura do parágrafo mudam a cada palavra tornando o irreal verdadeiro.

Um dos exemplos dessa forma de construir e pensar o mundo é o Colégio de 'Patafísica criado através das ideias de Alfred Jarry, onde Vian foi uma das principais figuras (o patafísico dos patafísicos) e um dos principais correspondentes. A carta exposta é um exemplo disso, é uma tentativa de compreender a irracionalidade - ficaria melhor escrever (neste caso) e por isso fica - estupidez do mundo.


Carta a sua Magnificência o Barão Jean Mollet vice-curador do Colégio de Patafísica

Sobre os falsificadores da Guerra

Havia quem desconfiasse, como Vossa Magnificência por certo o saberá, mas a desconfiança já não é possível; chegou a altura de o dizer abertamente: a guerra está falsificada. Qual guerra? Não coloco em causa nenhuma em especial; na minha opinião, ainda não houve uma boa, e veremos porquê. Julgo muito simplesmente ser útil e urgente chamar a atenção dos bons cidadãos para o mau uso que se faz dos seus dinheiros.

Foi um encontro acidental que me deixou com a pulga atrás da orelha. Vendo-me obrigado a deixar na garagem a minha carripana a gasolina (por preguiça, creio) tive a ideia, para chegar ao recinto fechado onde trabalho em quase completo silêncio a cuidar da conservação desses alimentos específicos do ouvido que são as vibrações musicais, tive, dizia eu, a ideia de apanhar o autocarro. Não estava muito cheio e por isso encontrei um lugar frente a um homem idoso. Teria uma idade respeitável? Eu não tenho a hábito de respeitar nem de desprezar; prefiro escolher de entre a gama dos sentimentos que vão do amor ao ódio, passando pelos diversos graus da afeição, da indiferença e da inimizade. Resumindo, estava defronte a um homem de sessenta e nove anos, número pelo qual não sinto tão-pouco qualquer respeito especial, não é, afinal, mais do que um símbolo, e eu não tenho feitio, graças a Vossa Magnificência, para me assustar com um símbolo que há-de permanecer, seja qual for a força da erupção, sob o meu completo domínio.

Para chegar ao assunto, sucede que o avesso do casaco desse velho enantiomorfo da minha pessoa exibia alguns fragmentos de fitas coloridas presos à lapela; curioso por natureza, permiti-me inquirir para que serviam.

- Esta - disse-me - é a Medalha militar. A outra, a Cruz de Guerra. E aqui está a Legião de honra de Lyon. A roseta.
- Eu cá não vejo nem medalhas nem cruzes - observei. - Apenas bonitos galões coloridos. Poderá ter-se dado o caso de ter havido uma guerra e de o senhor...
- Catorze-dezoito - disse ele, cortando a palavra mas sem insolência.
- Não me estou a fazer entender - tornei eu - Terá o senhor voltado da guerra?
- Sem um arranhão, meu jovem.

O canalha parecia vangloriar-se disso.

- Quer então dizer-me - prossegui eu (num tom que a custo moderei) - que essa guerra de Catorze foi mal feita?



Magnificência, dispenso-a da prossecução desta conversa, que me trouxe infalivelmente esta triste certeza; sim, estão-nos a enganar; sim, as guerras são mal feitas; sim, há sobreviventes entre os combatentes. Oh! Imagino que Vossa Magnificência vá encolher os ombros. Está a delirar, pensará Ela, com um ligeiro sorriso e aquele maneio de chefe que bem conheço. São ideias que lhe vêm à cabeça... Puseram-lhe macaquinhos lá dentro...

Mas não. Fiz a minha investigação; é conclusiva. A verdade é terrível: completamente negra com chapa cor-de-rosa; ei-la: em cada guerra, há milhares de combatentes que voltam sãos e salvos.

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Abster-me-ei de insistir no perigo psicológico deste triste estado de coisas; é preciso, colossal, monstruoso; o indivíduo que volta de uma guerra tem, forçosamente, mais ou menos a ideia de que ela não foi perigosa. Isto contribui para o fracasso da seguinte, e não nos faz levar a sério as guerras em geral. Mas isto não é nada. O combatente que não conseguiu que o matassem retém em si uma mentalidade de falhado; levará a peito a tarefa de compensar tal deficiência e contribuirá portanto para preparar a seguinte guerra; ora, como quereis vós que a prepare como deve se, visto que se livrou da anterior e, por conseguinte, do ponto de vista da guerra, é desqualificado?

Mas, repito-o, não me alongarei sobre o aspecto interno da coisa. O lado social é mais grave. Veja, Vossa Magnificência, em que é que eles empregam o dinheiro que lhes dá; vejo o que fazem eles do meu pé-de-meia, dos nossos impostos, dos nossos esforços. Veja o que fazem do trabalho dessas dezenas de milhares de bravos operários que, de manhã à noite, de uma ponta do ano à outra, se esfalfam a fazer bombas, a fabricar, com risco de vida, explosivos perigosos em instalações cheias de correntes de ar, a montar aviões que, também eles, não deviam voltar, mas que às vezes voltam. Contaram-me de certos casos. A vida é madrasta.

Oh, de que uma boa parte da responsabilidade de tudo isto incumbe ao inimigo, disso, Magnificência, é coisa que não discordo. É grave, evidentemente. O inimigo também não está a fazer o seu dever. Mas seja como for temos de reconhecer que nós nos esforçamos por o estorvar. Um inimigo com um bocadinho de ajuda havia de destruir-nos até ao último. Mas, longe de o ajudarmos, pregamos-lhe nas trombas com a arma vermelha, a arma branca, o morteiro, o canhão, a bomba variegada, o napalm; e se, por vezes, como em 1940, empregamos uma táctica novo, tentando induzi-lo a correr muito depressa para cair ao mar, levado pelo seu entusiasmo, temos de reconhecer que esses exemplos são muito raros e que de qualquer forma em 1940 a técnica ainda não estava bem no ponto porque nós não saltámos primeiro para a água para o atrair no encalço.

Mas o que se pode esperar!... em cada guerra acontece sempre o mesmo fenómeno irritante: recrutam-se, em massa amadores. No entanto a guerra não é uma coisa sem importância; faz-se para matar as pessoas e isso é algo que se aprende. Mas o que é que se passa? De todas as vezes, em ambos os campos, em vez de se confiar nas mãos dos profissionais a imensidade de tarefas delicadas que concorrem para o sucesso das boas campanhas, planeiam-se milhares de tarefas não especializadas e encomenda-se a sua execução a guerreiros profissionais idosos ou de patente inferior, e que portanto falharam uma guerra anterior. Como se pode querer que o espírito dos recrutas – e alguns deles não anseiam por outra coisa senão a dedicação À causa da guerra – adquira as qualidades necessárias para a realização perfeita de uma guerra ideal? Para não nos alongarmos mais, basta que afloremos de passagem o termo «mobilização». Crê por acaso que o objectivo de legislador ao empregar esta palavra, tenha sido efectivamente o de «imobilizar» os mobilizados nas casernas? Para mim, iluminado como já me sinto pelas minhas reflexões, a contradição não me surpreende; procede pura e simplesmente do espírito de sabotagem mantido pelos sobreviventes das guerras passadas.



Imaginemos que, por uma majestosa elevação de espírito – e o de Vossa Magnificência tem a envergadura apropriada para tais transportes – uma guerra é bem sucedida. Imaginemos uma guerra com todas munições gastas, todos operários sem matérias-primas, todos os soldados e todos os chefes abatidos – e isto de ambas as partes, em ambos os campos. Ah, bem sei que um tal resultado exigiria uma preparação minuciosa; e eles declaram-nos guerra cá com uma leviandade, uma desenvoltura, que tornam irrealizável essa guerra ideal em nome da qual, contra toda a esperança, continuamos nós – e continuaremos – a entregar o nosso óbolo quotidiano. Mas imaginemos, Magnificência, imaginemos esse combate do qual nem sequer um combatente escaparia! Eis uma coisa que resolveria de vez o conflito. Porque um problema não se coloca, Vossa Magnificência sabe que tem de haver quem o coloque. Basta suprimir esse «quem». Do mesmo modo, um conflito sem combatentes deixa de ser um conflito e nunca sobrevive ao desaparecimento deles.

Vilipendiei – não sem razão, como Vossa Magnificência concordará – os amadores; mas o mais triste é que há profissionais que não fazem o seu dever. Evidentemente que é inadmissível que um mobilizado ordinário volte intacto da frente; mas isso é porque fazem mal em imobilizar seja quem for, e em grande número. Dê-me Vossa Magnificência um exército de cinquenta homens que eu comprometo-me a controlá-lo; garanto-lhe que nenhum dos cinquenta homens voltará, nem que eu tenha de os abater com as minhas mãos e sem ajuda do inimigo; mas um milhão de homens, Magnificência… não. Com um milhão já não lhe posso garantir nada. Mas este não é o argumento; o mais trágico é que há soldados de carreira que se salvam da guerra. Antigamente, os oficiais atacavam à frente das suas tropas; sabiam muito bem, eles, que a sua morte era essencial para o bom andamento da guerra, graças ao sistema de promoções que colocava de seguida o subalterno mais qualificado no ponto mais perigoso, aquele em que o chefe acabava de morrer. Hoje em dia, parece que essa noção de base é questionada; têm-se visto generais modernos passar dos cinquenta anos e comandar as suas forças a partir dos P.C. colocados na retaguarda e até mesmo abrigados. Garantem-me, e estou disposto a acreditar, que semelhante estratégia produz o feliz efeito de estender o campo das operações, multiplicando, portanto, os riscos ao prolongar o ataque adverso; os aviões, dizem-me, são nos nossos dias suficientes numerosos para inundar de bombas consideráveis superfícies. Este raciocínio parece-me suspeito; bem sabemos, ai de nós, que algumas bombas falham o alvo, que nem todas, infelizmente, explodem; que a camuflagem grosseira e de eleição é por vezes contrariada no seu efeito pela malignidade da natureza, que consegue, em certos casos, imitá-la. No entanto, é também de crer, concedo, só terem amadores à sua disposição, procurem desembaraçar-se deles o mais depressa possível enviando-os para a linha da frente. Ora, aí encontram outros amadores, inimigos, sim, mas tão desajeitados como eles, e o conflito eterniza-se, como sucedeu, parece, em Verdun aqui há uns quarenta anos, não conseguindo esses pobres diabos exterminar-se mutualmente apesar da ajuda intensiva da artilharia de ambos os campos. A discussão é delicada; urge, sem dúvida, determinar a ordem pela qual é preciso eliminar os oficiais de diferentes patentes para obter da guerra o rendimento máximo. As ratoeiras deparam-se-nos a cada passo: por exemplo, se um general competente, será melhor que seja morto depressa ou não? O cálculo é delicado. Se for muito competente, mata ou faz matar imensos inimigos sem perder muitos homens; mas se não sofre grandes perdas isso significa que o general inimigo diante do qual se encontra não é muito competente; nesse caso, como é que se poder dizer que o primeiro é competente, limitando-se a triunfar sobre os incompetentes? E se não for muito competente, não será bom – sempre do ponto de vista da guerra – que seja morto depressa? O problema, como digo, é muito espinhoso e chama à lição o cálculo das probabilidades. Naturalmente, dir-se-á, de modo geral, que seria bom que um general desaparecesse depois de atingir uma certa quota de vítimas; um estudo estatístico poderia fornecer números provisoriamente aceitáveis para o mínimo exigível.

De tudo isto, não deixa de ser relevante, para voltar ao exemplo do oficial que antigamente atacava à frente das suas tropas, que (e era esse o caso) quando há profissionais em campo a guerra resulta muito melhor (tudo é relativo) do que quando abundam amadores no terreno. Na minha opinião houve antigamente um homem que se portou às mil maravilhas: foi aquele que, em Fontenoy, gritou a frase, justamente famosa: «Senhores ingleses, disparem primeiro.» Sem dúvida que, na sua ideia, os franceses deviam disparar ao mesmo tempo; era a maneira de realizar uma máxima carnificina: reunir, num ponto determinado, as tropas para se fuzilarem mutuamente à queima-roupa. Decerto traído por subordinados de espírito lento, esse homem, esse verdadeiro soldado, também não conseguiu obter um resultado satisfatório. Desde então, as estratégias improvisadas inventaram a guerra directa, a guerra de movimentos, a guerra de nervos, a guerrilha, a retirada, o recuo para posições preparadas (oh! Terrível pleonasmo) com antecedência, todas as tácticas que têm a vantagem de estragar imenso material e de custar muito caro, mas que descuram o essencial: o desaparecimento do combatente.



Vossa Magnificência perdoar-me-á decerto a desordem destas reflexões que escrevo no calor do momento anotadas tal como vieram ao espírito; a minha indignação não deu tempo ao meu pensamento para filtrar e ordenar cada um dos dados que se ofereciam para seu alimento. Esta carta vem-me do coração; vi-me de repente achincalhado, lorpado, aldrabado; nós não temos as guerras por que pagamos, e isso não me agrada: Vossa Magnificência convirá que não há razão para menos.

Despertemos, então, ainda há tempo; rememos contra essa perigosa maré que nos arrasta para os seus remoinhos. Acreditai em mim: o dia em que ninguém voltar da guerra será quando finalmente ela for bem feita. Nesse dia, dar-nos-emos conta que todas as tentativas abortadas até então foram obra de farsantes. Nesse dia, dar-nos-emos conta que basta UMA guerra para acabar com os preconceitos que ainda se associam a este modo de destruição. Nesse dia, será, para sempre, inútil recomeçar.

29 sable 86, vacuação de Bomba

P. S. – Pedem-me conselhos sobre o comportamento a adoptar relativamente àqueles que voltam das guerras actuais: Fique-se sabendo que me é indiferente são guerras falsificadas, é certo, mas, sobretudo, não são minhas guerras. Logicamente, deveríamos abater todos os que voltam intactos e tolerar – desde que não abram o bico – os que voltam parcialmente mortos, mutilados ou feridos. É evidente que deveríamos preferir os que voltam privados do uso da palavra, e que deveríamos ainda proibir absolutamente a todos, sejam eles quem forem, de se outorgarem do título «antigo combatente». Só há uma denominação adequada a tal praga: a de «falhados de guerra»

1er décervelage 86

Dossier 7 do Colégio de Patafísica

11 guidouille 86 = 25 de Junho de 1959

Boris Vian, Cantilenas em Geleia

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