terça-feira, 27 de abril de 2010

O Medo

Os anos 60 foram os mais prolíficos e de maior vanguardismo de Alexandre O'Neill, submetendo a sua poesia a novas experiências, acrescentado ao seu surrealismo uma tendência concretista. O homem na sociedade portuguesa - o marasmo - enlaçado no sonho, na solidão, no amor e no medo. E será no medo, nas experiências encaminhadas para este sentimento que O'Neill terá dois dos temas mais fascinantes das suas obras...


A lavagem cerebral, 1952
[Retrato de Alexandre O'Neill],
Fernando Lemos



Perfilados de medo


Perfilados de medo, agradecemos

o medo que nos salva da loucura.

Decisão e coragem valem menos

e a vida sem viver é mais segura.

Aventureiros já sem aventura,
perfilados de medo combatemos

irónicos fantasmas à procura
do que não fomos, do que não seremos.

Perfilados de medo, sem mais voz,

o coração nos dentes oprimido,
os loucos, os fantasmas somos nós.

Rebanho pelo medo perseguido,

já vivemos tão juntos e tão sós
que da vida perdemos o sentido...

Alexandre O'Neill, Poemas com Endereço (1962). Poesia Completas, Maio de 2007

Poema pouco original do medo

O medo vai ter tudo

pernas

ambulâncias

e o luxo blindado

de alguns automóveis

Vai ter olhos onde ninguém os veja

mãozinhas cautelosas
enredos quase inocentes

ouvidos não só nas paredes
mas também no chão

no tecto

no murmúrio dos esgotos
e talvez até (cautela!)

ouvidos nos teus ouvidos


O medo vai ter tudo

fantasmas na ópera

sessões contínuas de espiritismo

milagres

cortejos

frases corajosas

meninas exemplares

seguras casas de penhor

maliciosas casas de passe

conferências várias

congressos muitos

óptimos empregos

poemas originais

e poemas como este

projectos altamente porcos

heróis

(o medo vai ter heróis!)

costureiras reais e irreais

operários

          (assim assim)
escriturários

          (muitos)

intelectuais

          (o que se sabe)
a tua voz talvez
talvez a minha

com a certeza a deles


Vai ter capitais

países
suspeitas como toda a gente

muitíssimos amigos
beijos
namorados esverdeados

amantes silenciosos

ardentes

e angustiados


Ah o medo vai ter tudo
tudo

(Penso no que o medo vai ter
e tenho medo
que é justamente
o que o medo quer)


                *


O medo vai ter tudo
quase tudo
e cada um por seu caminho

havemos todos de chegar
quase todos

a ratos


Sim

a ratos


Alexandre O'Neill, Abandono Vigiado (1960). Poesia Completas, Maio de 2007

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