sábado, 8 de outubro de 2011

Cantilenas em geleia



Primeiro Amor

Para Jean Boullet*
para lhe mudar as ideias

Quando um homem ama uma mulher
Põe-na primeiro sobre os joelhos
Tem o cuidado de tirar o vestido
Para não estragar as suas calças
Porque um tecido sobre outro tecido
É coisa para gastar o tecido.
Em seguida, verifica com a língua
Se lhe tiraram as amígdalas como deve ser
Se não, pois com certeza, seria contagioso
E depois, como tem de ocupar as mãos
Busca, o mais longe que consegue buscar
Rapidamente constata
A presença efectiva e real da cauda
De um rato branco manchado de sangue
E puxa, ternamente, pelo pequeno cordel
Para engolir o tampax.

10 de Maio de 1947

* Ilustrador de Barnum's Digest e de J'irai cracher sur vos Tombes.

Boris Vian, Cantinelas em geleia (1949)

sábado, 11 de setembro de 2010

Porque hoje é sábado.

Com Kierkegaard e mais tarde com Heidegger e Jean-Paul Sartre percebeu-se que a existência precede a essência, isto é, o homem primeiro existe, se descobre e só depois é que se define. Com Vinícius de Moraes não podia ser diferente e não há melhor explicação do que esta para compreender a complexidade todo o seu trabalho poético e das suas diferentes fases criativas.

O «Dia da Criação» corresponde a uma jornada marcada pela forte formação religiosa da infância e na procura da transcendência espiritual, é neste processo que surge o questionamento do homem e da importância da sua criação...



O dia da criação

Macho e fêmea os criou.
Bíblia: Gênese, 1, 27

I

Hoje é sábado, amanhã é domingo
A vida vem em ondas, como o mar
Os bondes andam em cima dos trilhos
E Nosso Senhor Jesus Cristo morreu na Cruz para nos salvar.

Hoje é sábado, amanhã é domingo
Não há nada como o tempo para passar
Foi muita bondade de Nosso Senhor Jesus Cristo
Mas por via das dúvidas livrai-nos meu Deus de todo mal.

Hoje é sábado, amanhã é domingo

Amanhã não gosta de ver ninguém bem
Hoje é que é o dia do presente
O dia é sábado.

Impossível fugir a essa dura realidade
Neste momento todos os bares estão repletos de homens vazios
Todos os namorados estão de mãos entrelaçadas
Todos os maridos estão funcionando regularmente
Todas as mulheres estão atentas
Porque hoje é sábado.

II

Neste momento há um casamento

Porque hoje é sábado.
Há um divórcio e um violamento
Porque hoje é sábado.
Há um homem rico que se mata
Porque hoje é sábado.
Há um incesto e uma regata
Porque hoje é sábado.
Há um espetáculo de gala
Porque hoje é sábado.
Há uma mulher que apanha e cala
Porque hoje é sábado.
Há um renovar-se de esperanças
Porque hoje é sábado.
Há uma profunda discordância
Porque hoje é sábado.
Há um sedutor que tomba morto
Porque hoje é sábado.
Há um grande espírito de porco
Porque hoje é sábado.
Há uma mulher que vira homem
Porque hoje é sábado.
Há criancinhas que não comem
Porque hoje é sábado.
Há um piquenique de políticos
Porque hoje é sábado.
Há um grande acréscimo de sífilis
Porque hoje é sábado.
Há um ariano e uma mulata
Porque hoje é sábado.
Há uma tensão inusitada
Porque hoje é sábado.
Há adolescências seminuas
Porque hoje é sábado.
Há um vampiro pelas ruas
Porque hoje é sábado.
Há um grande aumento no consumo
Porque hoje é sábado.
Há um noivo louco de ciúmes
Porque hoje é sábado.
Há um garden-party na cadeia
Porque hoje é sábado.
Há uma impassível lua cheia
Porque hoje é sábado.
Há damas de todas as classes
Porque hoje é sábado.
Umas difíceis, outras fáceis
Porque hoje é sábado.
Há um beber e um dar sem conta
Porque hoje é sábado.
Há uma infeliz que vai de tonta
Porque hoje é sábado.
Há um padre passeando à paisana
Porque hoje é sábado.
Há um frenesi de dar banana
Porque hoje é sábado.
Há a sensação angustiante
Porque hoje é sábado.
De uma mulher dentro de um homem
Porque hoje é sábado.
Há a comemoração fantástica
Porque hoje é sábado.
Da primeira cirurgia plástica
Porque hoje é sábado.
E dando os trâmites por findos
Porque hoje é sábado.
Há a perspectiva do domingo
Porque hoje é sábado.

III

Por todas essas razões deverias ter sido riscado do Livro das Origens, ó Sexto Dia da Criação.
De fato, depois da Ouverture do Fiat e da divisão de luzes e trevas
E depois, da separação das águas, e depois, da fecundação da terra
E depois, da gênese dos peixes e das aves e dos animais da terra
Melhor fora que o Senhor das Esferas tivesse descansado.
Na verdade, o homem não era necessário
Nem tu, mulher, ser vegetal, dona do abismo, que queres como as plantas, imovelmente e nunca saciada
Tu que carregas no meio de ti o vórtice supremo da paixão.
Mal procedeu o Senhor em não descansar durante os dois últimos dias
Trinta séculos lutou a humanidade pela semana inglesa
Descansasse o Senhor e simplesmente não existiríamos
Seríamos talvez pólos infinitamente pequenos de partículas cósmicas em queda invisível na terra.
Não viveríamos da degola dos animais e da asfixia dos peixes
Não seríamos paridos em dor nem suaríamos o pão nosso de cada dia
Não sofreríamos males de amor nem desejaríamos a mulher do próximo
Não teríamos escola, serviço militar, casamento civil, imposto sobre a renda e missa de sétimo dia,
Seria a indizível beleza e harmonia do plano verde das terras e das águas em núpcias
A paz e o poder maior das plantas e dos astros em colóquio
A pureza maior do instinto dos peixes, das aves e dos animais em cópula.
Ao revés, precisamos ser lógicos, freqüentemente dogmáticos
Precisamos encarar o problema das colocações morais e estéticas
Ser sociais, cultivar hábitos, rir sem vontade e até praticar amor sem vontade
Tudo isso porque o Senhor cismou em não descansar no Sexto Dia e sim no Sétimo
E para não ficar com as vastas mãos abanando
Resolveu fazer o homem à sua imagem e semelhança
Possivelmente, isto é, muito provavelmente
Porque era sábado.

Vinícius de Moraes, Poemas, Sonetos e Baladas, 1946

quarta-feira, 1 de setembro de 2010

Cry Freedom

Cry Freedom - Grita Liberdade (PT)


[Cry Freedom - Kevin Kline (Donald Woods) e
Denzel Washington (Steve Biko)]


Cry Freedom é um filme produzido em 1987, numa década de clara oposição internacional ao apartheid sul-africano que levaria à libertação de Nelson Mandela (1990) e em 94 à organização das primeiras eleições multi-raciais nesse país; contudo, a película retrata os anos 70 e Steve Biko. Fotografa um decénio onde o regime atingiu o seu apogeu e a raríssima oposição internacional era silenciada pelos benefícios económicos provenientes do sul de África e a intervenção interna sofria as consequências da desinformação e brutalidade de um governo que acreditava unicamente na excelência da sua raça dirigente.

Biko, foi dos poucos a lutar contra o regime da NP e dos únicos a fazê-lo de uma forma consciente, recusando sempre o auxílio à força armada. No filme, a personagem (interpretada por Denzel Washington) é forte - se calhar até demasiado -, mostrando o carisma que levaria milhares de pessoas a assistir aos seus discursos e mais tarde ao seu enterro. Esta figura é-nos dada a conhecer por Donald Woods - que na projecção é representado por Kevin Kline -, um director de um jornal sul-africano que escrevera vários editoriais a condenar as ideias de Stephen Biko por as considerar racistas. Woods, após aceitar um convite para conhecer Biko, começa a conviver regularmente com este e a conhecer as suas ideias de igualdade e de confronto sem violência, mudando aos poucos as suas percepções e imagens sobre a segregação racial.

O filme, realizado por Richard Attenborough (o mesmo de Gandhi e Chaplin), mostra um Steve Biko na sua condição de banido da sociedade (não podia comunicar com mais do uma pessoa) e a sua luta contra um regime racista usando as suas ideias de «confronto sem violência».



terça-feira, 27 de abril de 2010

O Medo

Os anos 60 foram os mais prolíficos e de maior vanguardismo de Alexandre O'Neill, submetendo a sua poesia a novas experiências, acrescentado ao seu surrealismo uma tendência concretista. O homem na sociedade portuguesa - o marasmo - enlaçado no sonho, na solidão, no amor e no medo. E será no medo, nas experiências encaminhadas para este sentimento que O'Neill terá dois dos temas mais fascinantes das suas obras...


A lavagem cerebral, 1952
[Retrato de Alexandre O'Neill],
Fernando Lemos



Perfilados de medo


Perfilados de medo, agradecemos

o medo que nos salva da loucura.

Decisão e coragem valem menos

e a vida sem viver é mais segura.

Aventureiros já sem aventura,
perfilados de medo combatemos

irónicos fantasmas à procura
do que não fomos, do que não seremos.

Perfilados de medo, sem mais voz,

o coração nos dentes oprimido,
os loucos, os fantasmas somos nós.

Rebanho pelo medo perseguido,

já vivemos tão juntos e tão sós
que da vida perdemos o sentido...

Alexandre O'Neill, Poemas com Endereço (1962). Poesia Completas, Maio de 2007

Poema pouco original do medo

O medo vai ter tudo

pernas

ambulâncias

e o luxo blindado

de alguns automóveis

Vai ter olhos onde ninguém os veja

mãozinhas cautelosas
enredos quase inocentes

ouvidos não só nas paredes
mas também no chão

no tecto

no murmúrio dos esgotos
e talvez até (cautela!)

ouvidos nos teus ouvidos


O medo vai ter tudo

fantasmas na ópera

sessões contínuas de espiritismo

milagres

cortejos

frases corajosas

meninas exemplares

seguras casas de penhor

maliciosas casas de passe

conferências várias

congressos muitos

óptimos empregos

poemas originais

e poemas como este

projectos altamente porcos

heróis

(o medo vai ter heróis!)

costureiras reais e irreais

operários

          (assim assim)
escriturários

          (muitos)

intelectuais

          (o que se sabe)
a tua voz talvez
talvez a minha

com a certeza a deles


Vai ter capitais

países
suspeitas como toda a gente

muitíssimos amigos
beijos
namorados esverdeados

amantes silenciosos

ardentes

e angustiados


Ah o medo vai ter tudo
tudo

(Penso no que o medo vai ter
e tenho medo
que é justamente
o que o medo quer)


                *


O medo vai ter tudo
quase tudo
e cada um por seu caminho

havemos todos de chegar
quase todos

a ratos


Sim

a ratos


Alexandre O'Neill, Abandono Vigiado (1960). Poesia Completas, Maio de 2007

quarta-feira, 31 de março de 2010

Qual é o fundamento da arte?

L'Enseigne de Gersaint de Antoine Watteau (1720), palácio de Charlottenburg, Berlim


Qual é o fundamento da arte? Se apesar da independência, da irreverência do artista, do pintor, ela representa-se no mercado como um material do mundo dos leilões. Qual é o fundamento da arte? Isto é, apesar da produção respeitar os valores das escolas e a projecção do pintor (lutas, ideias e ideais) ao tornar-se num valor comum de mercado inserido num sistema mercantilista comum, não terá a arte disposto os valores materiais à frente dos princípios? Não terá perdido a sua representação em troca do seu valor estético? São as questões influídas quando vejo este quadro de Watteau - da direita para a esquerda - onde a visão dum casal se perde num espelho ou (ao lado), dois sujeitos, olham para os pormenores eróticos de um quadro em vez de apreciarem a sua totalidade; ou, na outra parte da sala, são empacotados um conjunto de quadros como se fossem o mesmo, terá Jean Antoine Watteau conseguido representar o fundamento da arte?

quarta-feira, 17 de fevereiro de 2010

O mundo é natural ou fantástico?

Isto é, o mundo é uma perpetuação natural ou uma marca do fantástico?

Em Julho de 1966, Ronald Christ realizou com Jorge Luis Borges uma extraordinária entrevista - digna da personalidade do escritor argentino -, que realça as suas imagens da vida perceptíveis neste excerto onde sobrevém a questão inicial:


Como é que define o fantástico, então?
Pergunto-me se podemos defini-lo. Julgo que é sobretudo uma intenção, num escritor. Lembro-me de uma observação muito profunda de Joseph Conrad - é um dos meus escritores preferidos - acho que na epígrafe de algo como The Dark Line, mas não é isso...

The Shadow Line [A Linha de Sombra]?
The Shadow Line. Nessa epígrafe ele dizia que algumas pessoas tinham pensado que a história era uma história fantástica por causa do fantasma do capitão que fazia parar o navio. Ele escreveu - e isto impressionou-me porque eu próprio escrevo história fantásticas - que escrever deliberadamente uma história fantástica não era sentir que o universo é, todo ele, fantástico e misterioso; nem que uma pessoa sentar-se a escrever algo deliberadamente fantástico significa falta de sensibilidade. Conrad pensava que sempre que se escreve sobre o mundo, mesmo que de um modo realista, se escreve uma história fantástica, porque o mundo em si mesmo é fantástico e insondável e misterioso.

Partilha desta convicção?
Sim. Acho que ele tinha razão. Falei com Bioy Casares que também escreve história fantásticas - histórias muito, muito boas - e ele disse: acho que Conrad tem razão; na verdade ninguém sabe se o mundo é realista ou fantástico, ou seja, se o mundo é um processo natural ou se é uma espécie de sonho, um sonho que nós podemos ou não partilhar com os outros.

Jorge Luis Borges, Entrevistas da Paris Review, Outubro de 2009

quinta-feira, 8 de outubro de 2009

Sobre os falsificadores da guerra

Nos últimos dois anos fui conhecendo um pouco melhor Boris Vian, muito para além dos poemas e de Outono em Pequim, a cada frase não tenho dúvidas de o considerar um dos escritores mais imaginativos que alguma vez li, todas as conclusões que tínhamos antes de iniciarmos a leitura do parágrafo mudam a cada palavra tornando o irreal verdadeiro.

Um dos exemplos dessa forma de construir e pensar o mundo é o Colégio de 'Patafísica criado através das ideias de Alfred Jarry, onde Vian foi uma das principais figuras (o patafísico dos patafísicos) e um dos principais correspondentes. A carta exposta é um exemplo disso, é uma tentativa de compreender a irracionalidade - ficaria melhor escrever (neste caso) e por isso fica - estupidez do mundo.


Carta a sua Magnificência o Barão Jean Mollet vice-curador do Colégio de Patafísica

Sobre os falsificadores da Guerra

Havia quem desconfiasse, como Vossa Magnificência por certo o saberá, mas a desconfiança já não é possível; chegou a altura de o dizer abertamente: a guerra está falsificada. Qual guerra? Não coloco em causa nenhuma em especial; na minha opinião, ainda não houve uma boa, e veremos porquê. Julgo muito simplesmente ser útil e urgente chamar a atenção dos bons cidadãos para o mau uso que se faz dos seus dinheiros.

Foi um encontro acidental que me deixou com a pulga atrás da orelha. Vendo-me obrigado a deixar na garagem a minha carripana a gasolina (por preguiça, creio) tive a ideia, para chegar ao recinto fechado onde trabalho em quase completo silêncio a cuidar da conservação desses alimentos específicos do ouvido que são as vibrações musicais, tive, dizia eu, a ideia de apanhar o autocarro. Não estava muito cheio e por isso encontrei um lugar frente a um homem idoso. Teria uma idade respeitável? Eu não tenho a hábito de respeitar nem de desprezar; prefiro escolher de entre a gama dos sentimentos que vão do amor ao ódio, passando pelos diversos graus da afeição, da indiferença e da inimizade. Resumindo, estava defronte a um homem de sessenta e nove anos, número pelo qual não sinto tão-pouco qualquer respeito especial, não é, afinal, mais do que um símbolo, e eu não tenho feitio, graças a Vossa Magnificência, para me assustar com um símbolo que há-de permanecer, seja qual for a força da erupção, sob o meu completo domínio.

Para chegar ao assunto, sucede que o avesso do casaco desse velho enantiomorfo da minha pessoa exibia alguns fragmentos de fitas coloridas presos à lapela; curioso por natureza, permiti-me inquirir para que serviam.

- Esta - disse-me - é a Medalha militar. A outra, a Cruz de Guerra. E aqui está a Legião de honra de Lyon. A roseta.
- Eu cá não vejo nem medalhas nem cruzes - observei. - Apenas bonitos galões coloridos. Poderá ter-se dado o caso de ter havido uma guerra e de o senhor...
- Catorze-dezoito - disse ele, cortando a palavra mas sem insolência.
- Não me estou a fazer entender - tornei eu - Terá o senhor voltado da guerra?
- Sem um arranhão, meu jovem.

O canalha parecia vangloriar-se disso.

- Quer então dizer-me - prossegui eu (num tom que a custo moderei) - que essa guerra de Catorze foi mal feita?



Magnificência, dispenso-a da prossecução desta conversa, que me trouxe infalivelmente esta triste certeza; sim, estão-nos a enganar; sim, as guerras são mal feitas; sim, há sobreviventes entre os combatentes. Oh! Imagino que Vossa Magnificência vá encolher os ombros. Está a delirar, pensará Ela, com um ligeiro sorriso e aquele maneio de chefe que bem conheço. São ideias que lhe vêm à cabeça... Puseram-lhe macaquinhos lá dentro...

Mas não. Fiz a minha investigação; é conclusiva. A verdade é terrível: completamente negra com chapa cor-de-rosa; ei-la: em cada guerra, há milhares de combatentes que voltam sãos e salvos.

___

Abster-me-ei de insistir no perigo psicológico deste triste estado de coisas; é preciso, colossal, monstruoso; o indivíduo que volta de uma guerra tem, forçosamente, mais ou menos a ideia de que ela não foi perigosa. Isto contribui para o fracasso da seguinte, e não nos faz levar a sério as guerras em geral. Mas isto não é nada. O combatente que não conseguiu que o matassem retém em si uma mentalidade de falhado; levará a peito a tarefa de compensar tal deficiência e contribuirá portanto para preparar a seguinte guerra; ora, como quereis vós que a prepare como deve se, visto que se livrou da anterior e, por conseguinte, do ponto de vista da guerra, é desqualificado?

Mas, repito-o, não me alongarei sobre o aspecto interno da coisa. O lado social é mais grave. Veja, Vossa Magnificência, em que é que eles empregam o dinheiro que lhes dá; vejo o que fazem eles do meu pé-de-meia, dos nossos impostos, dos nossos esforços. Veja o que fazem do trabalho dessas dezenas de milhares de bravos operários que, de manhã à noite, de uma ponta do ano à outra, se esfalfam a fazer bombas, a fabricar, com risco de vida, explosivos perigosos em instalações cheias de correntes de ar, a montar aviões que, também eles, não deviam voltar, mas que às vezes voltam. Contaram-me de certos casos. A vida é madrasta.

Oh, de que uma boa parte da responsabilidade de tudo isto incumbe ao inimigo, disso, Magnificência, é coisa que não discordo. É grave, evidentemente. O inimigo também não está a fazer o seu dever. Mas seja como for temos de reconhecer que nós nos esforçamos por o estorvar. Um inimigo com um bocadinho de ajuda havia de destruir-nos até ao último. Mas, longe de o ajudarmos, pregamos-lhe nas trombas com a arma vermelha, a arma branca, o morteiro, o canhão, a bomba variegada, o napalm; e se, por vezes, como em 1940, empregamos uma táctica novo, tentando induzi-lo a correr muito depressa para cair ao mar, levado pelo seu entusiasmo, temos de reconhecer que esses exemplos são muito raros e que de qualquer forma em 1940 a técnica ainda não estava bem no ponto porque nós não saltámos primeiro para a água para o atrair no encalço.

Mas o que se pode esperar!... em cada guerra acontece sempre o mesmo fenómeno irritante: recrutam-se, em massa amadores. No entanto a guerra não é uma coisa sem importância; faz-se para matar as pessoas e isso é algo que se aprende. Mas o que é que se passa? De todas as vezes, em ambos os campos, em vez de se confiar nas mãos dos profissionais a imensidade de tarefas delicadas que concorrem para o sucesso das boas campanhas, planeiam-se milhares de tarefas não especializadas e encomenda-se a sua execução a guerreiros profissionais idosos ou de patente inferior, e que portanto falharam uma guerra anterior. Como se pode querer que o espírito dos recrutas – e alguns deles não anseiam por outra coisa senão a dedicação À causa da guerra – adquira as qualidades necessárias para a realização perfeita de uma guerra ideal? Para não nos alongarmos mais, basta que afloremos de passagem o termo «mobilização». Crê por acaso que o objectivo de legislador ao empregar esta palavra, tenha sido efectivamente o de «imobilizar» os mobilizados nas casernas? Para mim, iluminado como já me sinto pelas minhas reflexões, a contradição não me surpreende; procede pura e simplesmente do espírito de sabotagem mantido pelos sobreviventes das guerras passadas.



Imaginemos que, por uma majestosa elevação de espírito – e o de Vossa Magnificência tem a envergadura apropriada para tais transportes – uma guerra é bem sucedida. Imaginemos uma guerra com todas munições gastas, todos operários sem matérias-primas, todos os soldados e todos os chefes abatidos – e isto de ambas as partes, em ambos os campos. Ah, bem sei que um tal resultado exigiria uma preparação minuciosa; e eles declaram-nos guerra cá com uma leviandade, uma desenvoltura, que tornam irrealizável essa guerra ideal em nome da qual, contra toda a esperança, continuamos nós – e continuaremos – a entregar o nosso óbolo quotidiano. Mas imaginemos, Magnificência, imaginemos esse combate do qual nem sequer um combatente escaparia! Eis uma coisa que resolveria de vez o conflito. Porque um problema não se coloca, Vossa Magnificência sabe que tem de haver quem o coloque. Basta suprimir esse «quem». Do mesmo modo, um conflito sem combatentes deixa de ser um conflito e nunca sobrevive ao desaparecimento deles.

Vilipendiei – não sem razão, como Vossa Magnificência concordará – os amadores; mas o mais triste é que há profissionais que não fazem o seu dever. Evidentemente que é inadmissível que um mobilizado ordinário volte intacto da frente; mas isso é porque fazem mal em imobilizar seja quem for, e em grande número. Dê-me Vossa Magnificência um exército de cinquenta homens que eu comprometo-me a controlá-lo; garanto-lhe que nenhum dos cinquenta homens voltará, nem que eu tenha de os abater com as minhas mãos e sem ajuda do inimigo; mas um milhão de homens, Magnificência… não. Com um milhão já não lhe posso garantir nada. Mas este não é o argumento; o mais trágico é que há soldados de carreira que se salvam da guerra. Antigamente, os oficiais atacavam à frente das suas tropas; sabiam muito bem, eles, que a sua morte era essencial para o bom andamento da guerra, graças ao sistema de promoções que colocava de seguida o subalterno mais qualificado no ponto mais perigoso, aquele em que o chefe acabava de morrer. Hoje em dia, parece que essa noção de base é questionada; têm-se visto generais modernos passar dos cinquenta anos e comandar as suas forças a partir dos P.C. colocados na retaguarda e até mesmo abrigados. Garantem-me, e estou disposto a acreditar, que semelhante estratégia produz o feliz efeito de estender o campo das operações, multiplicando, portanto, os riscos ao prolongar o ataque adverso; os aviões, dizem-me, são nos nossos dias suficientes numerosos para inundar de bombas consideráveis superfícies. Este raciocínio parece-me suspeito; bem sabemos, ai de nós, que algumas bombas falham o alvo, que nem todas, infelizmente, explodem; que a camuflagem grosseira e de eleição é por vezes contrariada no seu efeito pela malignidade da natureza, que consegue, em certos casos, imitá-la. No entanto, é também de crer, concedo, só terem amadores à sua disposição, procurem desembaraçar-se deles o mais depressa possível enviando-os para a linha da frente. Ora, aí encontram outros amadores, inimigos, sim, mas tão desajeitados como eles, e o conflito eterniza-se, como sucedeu, parece, em Verdun aqui há uns quarenta anos, não conseguindo esses pobres diabos exterminar-se mutualmente apesar da ajuda intensiva da artilharia de ambos os campos. A discussão é delicada; urge, sem dúvida, determinar a ordem pela qual é preciso eliminar os oficiais de diferentes patentes para obter da guerra o rendimento máximo. As ratoeiras deparam-se-nos a cada passo: por exemplo, se um general competente, será melhor que seja morto depressa ou não? O cálculo é delicado. Se for muito competente, mata ou faz matar imensos inimigos sem perder muitos homens; mas se não sofre grandes perdas isso significa que o general inimigo diante do qual se encontra não é muito competente; nesse caso, como é que se poder dizer que o primeiro é competente, limitando-se a triunfar sobre os incompetentes? E se não for muito competente, não será bom – sempre do ponto de vista da guerra – que seja morto depressa? O problema, como digo, é muito espinhoso e chama à lição o cálculo das probabilidades. Naturalmente, dir-se-á, de modo geral, que seria bom que um general desaparecesse depois de atingir uma certa quota de vítimas; um estudo estatístico poderia fornecer números provisoriamente aceitáveis para o mínimo exigível.

De tudo isto, não deixa de ser relevante, para voltar ao exemplo do oficial que antigamente atacava à frente das suas tropas, que (e era esse o caso) quando há profissionais em campo a guerra resulta muito melhor (tudo é relativo) do que quando abundam amadores no terreno. Na minha opinião houve antigamente um homem que se portou às mil maravilhas: foi aquele que, em Fontenoy, gritou a frase, justamente famosa: «Senhores ingleses, disparem primeiro.» Sem dúvida que, na sua ideia, os franceses deviam disparar ao mesmo tempo; era a maneira de realizar uma máxima carnificina: reunir, num ponto determinado, as tropas para se fuzilarem mutuamente à queima-roupa. Decerto traído por subordinados de espírito lento, esse homem, esse verdadeiro soldado, também não conseguiu obter um resultado satisfatório. Desde então, as estratégias improvisadas inventaram a guerra directa, a guerra de movimentos, a guerra de nervos, a guerrilha, a retirada, o recuo para posições preparadas (oh! Terrível pleonasmo) com antecedência, todas as tácticas que têm a vantagem de estragar imenso material e de custar muito caro, mas que descuram o essencial: o desaparecimento do combatente.



Vossa Magnificência perdoar-me-á decerto a desordem destas reflexões que escrevo no calor do momento anotadas tal como vieram ao espírito; a minha indignação não deu tempo ao meu pensamento para filtrar e ordenar cada um dos dados que se ofereciam para seu alimento. Esta carta vem-me do coração; vi-me de repente achincalhado, lorpado, aldrabado; nós não temos as guerras por que pagamos, e isso não me agrada: Vossa Magnificência convirá que não há razão para menos.

Despertemos, então, ainda há tempo; rememos contra essa perigosa maré que nos arrasta para os seus remoinhos. Acreditai em mim: o dia em que ninguém voltar da guerra será quando finalmente ela for bem feita. Nesse dia, dar-nos-emos conta que todas as tentativas abortadas até então foram obra de farsantes. Nesse dia, dar-nos-emos conta que basta UMA guerra para acabar com os preconceitos que ainda se associam a este modo de destruição. Nesse dia, será, para sempre, inútil recomeçar.

29 sable 86, vacuação de Bomba

P. S. – Pedem-me conselhos sobre o comportamento a adoptar relativamente àqueles que voltam das guerras actuais: Fique-se sabendo que me é indiferente são guerras falsificadas, é certo, mas, sobretudo, não são minhas guerras. Logicamente, deveríamos abater todos os que voltam intactos e tolerar – desde que não abram o bico – os que voltam parcialmente mortos, mutilados ou feridos. É evidente que deveríamos preferir os que voltam privados do uso da palavra, e que deveríamos ainda proibir absolutamente a todos, sejam eles quem forem, de se outorgarem do título «antigo combatente». Só há uma denominação adequada a tal praga: a de «falhados de guerra»

1er décervelage 86

Dossier 7 do Colégio de Patafísica

11 guidouille 86 = 25 de Junho de 1959

Boris Vian, Cantilenas em Geleia